segunda-feira, 9 de abril de 2012

Do sonho da ultima noite





Talvez fossem traumas, mas havia medo, ele sempre teve medo de tudo, mesmo das coisas boas, tanto que escancarava no seu jeito torto de experimentar. Uma vez alguém lhe disse para não esperar que tudo fosse queimado.

Vivíamos em paralelos, enxergávamos em paralelos, escondidos nas possibilidades infinitas dos sonhos. E nossa morada era imensa, tantos quartos com lembranças de tudo o que vivemos, tantas pinturas e fotografias espalhadas, mensagens invisíveis em volta, conexões incolores, inodoras, mas que preenchiam o ambiente, assim como nossa própria extensão.

E ele caminhou pelos corredores, atravessando salões, penetrando as fotografias, atravessando as conexões... Caminhou pelo passado, encontrou músicos do Rock, relembrou dos tempos em que acreditava na espiritualidade do homem, cada passo que dava mudava em sua vista a paisagem em volta, cansado sentou, viu a frente um grupo de pessoas que dançavam nuas ao sol, ao som de batuques numa dança circular viva. Atrás numa imensa auto-estrada, estranhos carros transitavam, ele estava sentado numa vastidão acesa, e podíamos ver, acreditávamos ver, o mundo entrar em catarse.

Num relance alguém apareceu alguém com o rosto escondido na memória, alguém que deveria machucá-lo, veio e a ajudou a lembrar, a lembrar o caminho de volta, a lembrar que ele estava deixando tudo pra trás, o medo tomou-lhes as lembranças e em seu caminho se perdeu, se iludiu pelo domo que usava, trancou seus sonhos e imaginou o de outros. Mas esse estranho lhe fez entender que não poderia permitir que tudo fosse destruído.

Quando foi em frente nos corredores do adeus, parte dele escolheu ficar em seu quarto quando o incêndio começou, escolheu deixar que o fogo consumisse tudo o que amava mesmo a si próprio, porém ele não estaria só... Sua outra parte, de longe voltou, convencido pelo outro sem rosto, voltou sorrateiramente enquanto ele estava sentindo-se seguro, abraçado com a morte de tudo o que havia construído na nossa morada.

E essa parte que voltou, subiu as escadas de sua história interior, procurou nas gavetas mais escondidas algo que o fizesse desistir de desistir, que o tirasse das chamas, e então imagens carregou, entregou-as nas mãos de sua outra metade, deu-lhe a mão e o livrou do medo, e ajuda pediu, ajuda gritou, eu estava lá eu podia sentir os pedaços se juntando, e do incêndio que a tudo tomava, as partes se juntavam em luta. E eu joguei água, mas era pouca água para tanto fogo, e não conseguíamos controlar sozinhos, não conseguia conter o final, e tudo queimava, mas ainda havia ele, havia eu, porque ainda podíamos nos enxergar diante de tudo o que estava se dissolvendo.

No olhar nos encontramos, porque eu era ele, eu era o sem rosto solto no espaço. No impulso procuramos ajuda e corremos desesperadamente, gritamos, e não havia mais medo, havia vontade. E me lembro, lembro de quanto corremos, e de como pessoas desinteressadas apareceram, como fomos percebendo que elas eram parte de tudo aquilo, e como ajudaram.

Lembro que o teto queria ceder, mas as chamas apagaram com a infiltração, com a vontade. Alguns lugares ficaram tão deformados que já não podíamos enxergar que havia significado. Andamos por entre as ruínas do que já foi e me espantei com tanto de mim que foi perdido, com o tanto que pelo medo e pela raiva degenerou-se, dissolveu-se em pó!

Depois de algum tempo, nos destroços, eu e ele tínhamos uma só visão, meu rosto tomou forma no rosto dele, e o domo estava ao chão, percebi uma pequena centelha em minha mão, havia algo vivo, e meu pensamento podia vislumbrar, não há outra forma, não há outra opção. E é onde estou agora, caminhado por entre os destroços desse sonho da ultima noite, revendo o que fui, o que desejo, e o que fiz de mim...

O que isso significa?... Tudo! Tudo o que fiz de mim, todo o meu afastamento de mim mesmo, tudo o que nós (eu e eu mesmo) compactuamos. E talvez, eu mesmo, parte perdida em sonhos me mostrou o quanto que o medo, a apatia foram nossos venenos mais presentes, os catalisadores de um instinto de doença e destruição.

Contudo, fica a imagem do futuro entrelaçada ao presente, possibilidade real ou fictícia? Dependerá das escolhas. Das ruínas ficou a possibilidade de reconstrução, nas mãos as sementes e a frente uma imagem bonita, de força, prazerosa... Mas só como possibilidade...

Ferreira
2010/12




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