Talvez fossem traumas, mas havia medo, ele sempre
teve medo de tudo, mesmo das coisas boas, tanto que escancarava no seu jeito
torto de experimentar. Uma vez alguém lhe disse para não esperar que tudo fosse
queimado.
Vivíamos em paralelos, enxergávamos em paralelos,
escondidos nas possibilidades infinitas dos sonhos. E nossa morada era imensa,
tantos quartos com lembranças de tudo o que vivemos, tantas pinturas e
fotografias espalhadas, mensagens invisíveis em volta, conexões incolores,
inodoras, mas que preenchiam o ambiente, assim como nossa própria extensão.
E ele caminhou pelos corredores, atravessando
salões, penetrando as fotografias, atravessando as conexões... Caminhou pelo
passado, encontrou músicos do Rock, relembrou dos tempos em que acreditava na
espiritualidade do homem, cada passo que dava mudava em sua vista a paisagem em
volta, cansado sentou, viu a frente um grupo de pessoas que dançavam nuas ao
sol, ao som de batuques numa dança circular viva. Atrás numa imensa
auto-estrada, estranhos carros transitavam, ele estava sentado numa vastidão
acesa, e podíamos ver, acreditávamos ver, o mundo entrar em catarse.
Num relance alguém apareceu alguém com o rosto
escondido na memória, alguém que deveria machucá-lo, veio e a ajudou a lembrar,
a lembrar o caminho de volta, a lembrar que ele estava deixando tudo pra trás,
o medo tomou-lhes as lembranças e em seu caminho se perdeu, se iludiu pelo domo
que usava, trancou seus sonhos e imaginou o de outros. Mas esse estranho lhe
fez entender que não poderia permitir que tudo fosse destruído.
Quando foi em frente nos corredores do adeus, parte
dele escolheu ficar em seu quarto quando o incêndio começou, escolheu deixar
que o fogo consumisse tudo o que amava mesmo a si próprio, porém ele não
estaria só... Sua outra parte, de longe voltou, convencido pelo outro sem
rosto, voltou sorrateiramente enquanto ele estava sentindo-se seguro, abraçado
com a morte de tudo o que havia construído na nossa morada.
E essa parte que voltou, subiu as escadas de sua
história interior, procurou nas gavetas mais escondidas algo que o fizesse
desistir de desistir, que o tirasse das chamas, e então imagens carregou,
entregou-as nas mãos de sua outra metade, deu-lhe a mão e o livrou do medo, e
ajuda pediu, ajuda gritou, eu estava lá eu podia sentir os pedaços se juntando,
e do incêndio que a tudo tomava, as partes se juntavam em luta. E eu joguei
água, mas era pouca água para tanto fogo, e não conseguíamos controlar
sozinhos, não conseguia conter o final, e tudo queimava, mas ainda havia ele,
havia eu, porque ainda podíamos nos enxergar diante de tudo o que estava se
dissolvendo.
No olhar nos encontramos, porque eu era ele, eu era
o sem rosto solto no espaço. No impulso procuramos ajuda e corremos
desesperadamente, gritamos, e não havia mais medo, havia vontade. E me lembro,
lembro de quanto corremos, e de como pessoas desinteressadas apareceram, como
fomos percebendo que elas eram parte de tudo aquilo, e como ajudaram.
Lembro que o teto queria ceder, mas as chamas
apagaram com a infiltração, com a vontade. Alguns lugares ficaram tão
deformados que já não podíamos enxergar que havia significado. Andamos por
entre as ruínas do que já foi e me espantei com tanto de mim que foi perdido,
com o tanto que pelo medo e pela raiva degenerou-se, dissolveu-se em pó!
Depois de algum tempo, nos destroços, eu e ele
tínhamos uma só visão, meu rosto tomou forma no rosto dele, e o domo estava ao
chão, percebi uma pequena centelha em minha mão, havia algo vivo, e meu
pensamento podia vislumbrar, não há outra forma, não há outra opção. E é onde
estou agora, caminhado por entre os destroços desse sonho da ultima noite,
revendo o que fui, o que desejo, e o que fiz de mim...
O que isso significa?... Tudo! Tudo o que fiz de
mim, todo o meu afastamento de mim mesmo, tudo o que nós (eu e eu mesmo)
compactuamos. E talvez, eu mesmo, parte perdida em sonhos me mostrou o quanto
que o medo, a apatia foram nossos venenos mais presentes, os catalisadores de
um instinto de doença e destruição.
Contudo, fica a imagem do futuro entrelaçada ao
presente, possibilidade real ou fictícia? Dependerá das escolhas. Das ruínas
ficou a possibilidade de reconstrução, nas mãos as sementes e a frente uma
imagem bonita, de força, prazerosa... Mas só como possibilidade...
Ferreira
2010/12