quarta-feira, 6 de abril de 2011

O Enigma de Kaspar Hauser

Como na comunicação a ferramenta que media as relações é a linguagem, tive a idéia de por hoje refleti-la pegando como carona o caso de Kaspar Hauser tratado no filme de Werner Herzog, e desse modo me aproveitarei de um texto que fiz para a disciplina de filosofia da linguagem para dar um impulso a uma possivel comunicação...


Kaspar Hauser
Ensaio sobre a construção do real

          O presente trabalho visa refletir a questão da linguagem como processo sobre o qual é possível ou não referir a realidade e até que ponto há uma construção do real, e ainda se é possível falar de uma natureza humana ou se esta é adquirida de acordo com o envolvimento do indivíduo com a língua, a cultura, os costumes em geral de determinada sociedade. De modo que o Singular caso de um jovem conhecido como Kaspar Hauser, nos traz a tona indefinidas indagações sobre os diversos campos do conhecimento, sobretudo a questão da linguagem. Esta é uma reflexão do olhar de Werner Herzog em seu filme Jeder für sich und Gott gegen alle que traduzido ao pé da letra significa: Cada um por si Deus contra todos, mas também conhecido como O Enigma de Kaspar Hauser, de 1974. É uma história perturbadora baseada em fatos reais que conta a trajetória de um jovem e seu contado tardio com o mundo dos homens, e que nos convida a visualizar o tortuoso processo de aprendizagem de uma figura única.
          Esse ser misterioso aparece pela primeira vez para a sociedade, em uma praça de Nuremberg no domingo de pentecostes de 1828, estático, com o olhar assustado e uma carta na mão, endereçada ao Capitão de Cavalaria do 4º Esquadrão do 6º Regimento de Nuremberg. Ao lê-se a carta podemos notar a vivência peculiar desse estranho, a carta dizia:

Envio-lhe um jovem que deseja servir seu rei. Ele foi deixado na minha porta em 7 de outubro de 1812. Sou um mísero trabalhador com dez filhos e mal consigo sustentá-los. Quando a mãe largou seu filho para que eu o criasse não me deixou nenhuma informação. Por isso não denunciei as autoridades. Ele não saiu de casa desde 1812 para que ninguém soubesse. Pode perguntar, mas ele não saberá responder. Eu o ensinei a ler e a escrever. E se perguntar o que ele quer ser ele dirá que quer ser um cavaleiro, quer ser tão bom cavaleiro quanto seu pai foi. Se ele tivesse tido pais creio que teria sido um jovem inteligente. Basta mostrar que ele entende. Sr capitão ele não deve de forma alguma ser maltratado. Ele não sabe onde moro, eu o trouxe durante a noite. Não quero que saibam meu nome por isso não assinei esta carta. (HERZOG, Trecho de O Enigma de kaspar Hauser)

          Tal carta enfatiza o mistério desse jovem, embora traga algumas informações para os moradores de Nuremberg sobre o mesmo, que depois saberão, se chama Kaspar Hauser.
         Werner Herzog em seu filme traça a trajetória de Kaspar em diversos momentos que vão demarcando seu envolvimento com a realidade humana, bem como insere propostas e propõe questionamentos a cerca da vida humana e sua relação com o mundo. Mostra num primeiro momento um jovem de expressão esquisita, preso em uma masmorra, alimentado a pão e água que são deixados a noite enquanto dorme, sem contato com a vida exterior a seu cativeiro, até que um dia é deixado por um homem misterioso numa praça de Nuremberg, e esse é outro momento, é o ponto de contato com outros homens, com uma práxis tardia, onde começa a aprender sua língua, seus costumes, a ter noção de dor e apresentar emoções. Porém como não parece se adequar aquela sociedade, passa de um caso curioso para um ser bizarro e como se não bastasse é mandado para um circo onde é descrito como um dos quatro enigmas da humanidade. É no circo que um professor chamado Daumer se interessa por Kaspar, que numa tentativa de fuga do circo é encontrado e adotado pelo professor. Dois anos se passam na tutela do professor Daumer. E kaspar sofre por sua dificuldade em aprender e esse é outro momento que pode ser demarcado como um dos mais expressivos da trama, pois é quando este passa a questionar, a constituir o mundo, como mais à frente, pretendemos refletir. Mas, estranha é a tendência de Kaspar a querer voltar para sua masmorra onde não havia homens ou pensamentos, o mundo lhe parece um fardo, por propor-lhe as possibilidades de constituí-lo ao passo que transpõe sua incapacidade perante o mesmo, e isso nos faz pensar se não é sua pequena variação lingüística alcançada tardiamente sem experimentar uma prática social anterior que o faz sentir essa distância. O fato é que com o tempo Kaspar consegue recobrar da sua “vivencia” no cativeiro, sua vida no silêncio, e com isso pode haver uma possível lembrança do homem que o manteve ali, homem que talvez fosse chave para seu mistério, mas de longe não é a chave para o enigma proposto a humanidade que é o próprio kaspar, pois este representa a humanidade sob um ponto de vista alternativo, questionável, reflexivo ao se pensar a questão da natureza humana. Pois bem, Herzog propõe que o homem misterioso com medo de que lhe fosse revelada a identidade, já que o curioso caso estava na boca de todos, decide então calar o jovem Kaspar Hauser, atentando contra sua vida por duas vezes, na qual a segunda é fatal. Deixa para trás um jovem moribundo e uma carta que Dizia: “Hauser saberá com certeza descrever como sou e de onde venho. Para que ele não faça isso vou lhes dizer de onde venho e também qual é meu nome.” (HERZOG, trecho de O Enigma de Kaspar Hauser). Porém nome algum se revela se não prováveis iniciais, demonstrando que a origem de Kaspar é possivelmente escandalosa para se correr o risco de vir a tona. Porém não é o segredo de sua origem o que mais perturba, mas o resultado de sua vida, o trajeto em meio social tão singular que traz espanto e curiosidade. E Herzog mostrou isso com maestria nessa obra inquietante e, sobretudo humana.
          Então, o que o caso Kaspar Hauser nos faz pensar, quando no filme vemos sua saída do cativeiro para o meio social? Parece que é aí que o individuo começa a se construir, e não apenas isso, parece que o mundo começa a se revelar para ele, ele passa a referir o mundo. E qual ferramenta media esse processo? Parece que a linguagem. Mas como vemos, a realidade começa a ser questionável aos olhos de Kaspar, seu olhar para o mundo é alternativo, então a que realidade Hauser refere? Ou será que há aí uma construção da realidade? Não parece ser a mesma realidade dos moradores de Nuremberg, pois aí, por exemplo, ele não era capaz de distinguir os atributos do homem em relação a um gato que em certa cena tenta ensinar a andar sobre duas patas, como foi feito com ele quando o fizeram se equilibrar sobre os pés e caminhar, sua visão é outra e a trama vai deixando clara, de modo que para elucidar essa questão vale citar um trecho de uma discussão de Gonçalo A. Palácios:
O real, conseqüentemente, não é refletido pelo pensamento, nem pode reduzir-se ao que está ali para ser nomeado e referido. É exatamente o contrario: real é o que cada língua pode dizer. As relações reais, portanto, são as relações que a língua cria, e nos ensina a nomear e reconhecer. (PALÁCIOS, 1995, p.63)

          Com essa reflexão não estamos propondo que não há uma realidade empírica que vá além da linguagem, que não seja referida, a questão é que nos parece que para o homem a realidade vai até onde é possível dizê-la, pois o real não se constitui apenas de objetos concretos, mas também de relações e conceitos abstratos e isso não parece ser menos real, mas constitui a vida humana.
          Kaspar passa por um processo de autoconstrução, que nos faz pensar que não há uma natureza humana preestabelecida, é consenso que haja fatores biológicos comuns ao gênero humano, mas entendemos e Werner Herzog nos leva a essa compreensão, que a natureza humana é adquirida num processo social, o sujeito constitui-se nesse processo que não por acaso se dá através da linguagem. Notamos isso quando o jovem é perguntado por religiosos se quando no cativeiro “já tinha alguma noção de Deus” Ao que ele responde que não entendia tal pergunta “No cativeiro, eu não pensava em nada e não consigo imaginar que Deus do nada criou tudo como vocês me disseram” Desconcertados, tentam impor-lhe a fé, mas kaspar retruca “Primeiro, preciso aprender a ler e a escrever melhor para compreender o resto”. Essa ultima frase de Kaspar elucida a nossa percepção da linguagem como o processo pelo qual o homem constitui a si e o mundo. Mas por que para nosso personagem esse processo é tão pesado? Por que a constituição do mundo por kaspar é alternativa à sociedade? Parece que é justamente por esse acesso tardio ao contato, e aí parece que a linguagem não foi suficiente para uma adequação ao meio, pois lhe faltou uma relação entre linguagem e prática, mas vemos a prática como o processo que contribui para acumulação de conceitos que possibilitam uma compreensão do mundo, mas Kaspar conhece pouco, ele precisa “aprender a ler e a escrever melhor para compreender o resto” e talvez por isso fuja aos conceitos ou pré-conceitos estabelecidos pela sociedade e sofre as conseqüências disso.
          Acreditamos que um dos momentos mais ricos do filme é quando Kaspar Hauser está sob a tutela pelo professor Daumer, pois é a partir daí que se tornam mais claras as mudanças que o processo de comunicação com os homens faz em Kaspar, é nessa fase que já munido de alguns conceitos o jovem sente profundamente o espanto e desprezo que os homens tem em relação a ele, e ele sofre. Após dois anos sob a tutela do professor, temos um diá
logo que elucida o desenvolvimento do sujeito e seus questionamentos a cerca do mundo. Depois que Florian, um cego que perdeu toda a família em um acidente, toca uma música no piano, Kaspar emocionado vira-se para Daumer e diz: “A música soa forte no meu peito. Estou muito velho”. Ao que o professor responde: “kaspar você mal começou a viver, tem um futuro inteiro pela frente”. Então kaspar pergunta: “Por que tudo é tão difícil para mim? Por que não posso tocar piano como respiro?”. E Dalmer lhe explica: “Ouça, Kaspar, em dois anos que está comigo você aprendeu muita coisa. Agora, depois de velho, você tem que aprender de tudo, pois nunca esteve entre os homens”. Então kaspar responde: “Para mim os homens são como lobos”.
          A visão de mundo de Kaspar Hauser assim como sua própria existência está carregada de mistério, e o compreendemos até onde nosso entendimento nos permite, a questão é que ele parece se sentir uma ponta solta nesse mundo de “lobos”, de modo que lhe tortura o fardo que essa natureza humana tardia lhe impôs e visualizamos isso quando a certa altura da trama, em uma festa quando perguntado sobre seu tempo no cativeiro antes de saber da existência humana, ele responde duramente: “Melhor do que aqui fora”; e mais adiante ainda diz: “a única coisa interessante em mim, é minha vida”, ou seja, Kaspar se sente incompleto, só tem de si a parte animal, só tem de interessante a própria vida. Faltou-lhe o percurso de apreensão da linguagem, que lhe foi privado por seu cárcere, chegou tarde, pois “um mundo sem linguagem é como um museu com objetos, mas sem publico nem etiquetas. Sem a linguagem temos um mundo inacabado. A palavra completa o mundo. A palavra preenche o real” (PALÁCIOS, 1995, p.65). E é aí que parece fazer sentido o perturbador prólogo do filme que ecoa em nosso espírito durante toda a trama: “Esses gritos assustadores ao redor são o que chamam de silencio?” (HERZOG, prólogo de o Enigma de Kaspar Hauser). Pois a Kaspar faltava a palavra, sua vida humana começara há muito pouco, e sobrava-lhe o silêncio.
          Herzog foi genial na construção dessa trama, um filme repleto de sutilezas que nos espantam e apaixonam, além de um nome que merece alguma reflexão: Jeder für sich und Gott gegen alle (Cada um por si Deus Contra Todos). Ao que parece esse “Cada um por si” representa a apreensão individual que cada um faz do real, apesar de haver a sociedade que guia a uma noção comum do mundo, Kaspar é a prova de que a trajetória é individual, e aí Kaspar reflete a própria humanidade nessa construção de si solitária. E “Deus contra todos”, se pensarmos Deus como um conceito eterno, perfeito e imutável, veremos que opõe a tudo que é humano e inacabado.
          Por fim, com esse curioso caso que nos incita a pensar a linguagem, nos dispusemos a esses questionamentos que nos levaram a certas conclusões, mas que acreditamos vez por outra nos trará mais e mais problemas. Por agora percebemos uma natureza humana adquirida, semelhante ao que Locke chama de tabula rasa, uma folha em branco que vai sendo preenchida com as cores do mundo, e a linguagem é o pincel que colore o mundo, dando ao homem de presente a possibilidade de construir a sua realidade.


REFERÊNCIAS
O ENIGMA DE KASPAR HAUSER. Werner Herzog (dir.) Distribuição Versátil Home Vídeo. Alemanha: 1974, 1 DVD, 109 min., son., color.

PALÁCIOS, Gonçalo Armijos. Filosofia e Linguagem. In: Signótica: revista do Mestrado em Letras e Lingüística /ICHL – UFG, vol.7, Goiania: Editora da UFG, jan/dez. 1995. pp. 59 – 65.

Nenhum comentário:

Postar um comentário